As cartas de amor que António Martinho do Rosário escreveu a uma senhora de Abrantes constituem parte importante da fonte documental que permitiu ao Veto Teatro Oficina reconstituir a vida e obra do homem que ficou famoso sob o pseudónimo de Bernardo Santareno.
Ficção e realidade caminham de mãos dadas durante cerca de duas horas de espectáculo onde se sucedem cenas sobre várias fases da vida de um homem que terminou os seus dias entre a amargura e o desalento. Um homem que na sua adolescência quis ser padre e a quem o pai, um revolucionário e fervoroso republicano oriundo de Espinheiro (Alcanena), foi resgatar ao seminário dos Olivais de pistola em punho dizendo que o preferia ver morto que o ver padre. Lenda ou realidade, a verdade é que o pai do escritor esteve associado a movimentos revolucionários durante o Estado Novo e foi condenado ao degredo em Moçâmedes (Angola).
A peça, que tem como autores José Ramos e Fernanda Narciso sobre textos originais de Bernardo Santareno, revela o Bernardo Santareno místico, religioso por influência da mãe. Mas expõe também o jovem namoradeiro, alto e bem vestido, que vai semeando romances por onde passa, como a senhora de Abrantes que doou mais de uma centena de cartas à Biblioteca Nacional após a morte do autor de “O Judeu”.
Só a vida de António Martinho do Rosário, o homem que se formou em Medicina em Coimbra por vontade do pai, dava um romance. A primeira peça de teatro foi escrita aos 10 anos. Era participante activo, como autor e actor, das récitas no Liceu de Santarém, onde foi aluno do quadro de honra. Esteve ligado a vários movimentos católicos de juventude. Foi médico com consultório aberto em Lisboa mas tinha pudor em pedir dinheiro aos clientes. Regularmente pedia ao pai dinheiro para pagar a pensão onde dormia.
Da sua experiência como médico num navio da pesca do bacalhau resultou a peça “O Lugre”, também invocada no espectáculo que entrou em digressão pelo país. Dramaturgo com elevada consciência política e social, fez das suas peças denúncia contra a opressão e a discriminação nas suas variadas vertentes. Por ironia do destino, o jovem fervorosamente católico viu a Igreja agitar-se contra algumas das suas peças. “A Promessa” foi retirada de cena no Porto três dias após a estreia por pressão de um padre local e de um grupo de paroquianas.
De todos esses factos e lendas se compõe o espectáculo que o público vai ter oportunidade de ver. Resultou de um desafio do presidente da Câmara de Santarém, Francisco Moita Flores, e foi um dos pontos altos da iniciativa “Novembro, Mês de Santareno” promovida pelo município através do Instituto Bernardo Santareno.
O elenco integra a participação de 30 actores, como Nuno Domingos, Eliseu Raimundo, Susana Alves, Ana Gargaté, Mário Marcos, Carlos Gabriel, António Júlio, Tânia Santos, São Marecos ou Filomena Pereira. A encenação e direcção de actores é repartida por José Ramos e Nuno Domingos. A produção movimenta ao todo cerca de 50 elementos do Veto Teatro Oficina – uma das estruturas que integram o Círculo Cultural Scalabitano.